Desde que o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou os embargos de declaração opostos pelo Estado do Rio Grande do Norte na ADC 49, que discute a constitucionalidade de artigos da Lei Kandir que preveem a incidência de ICMS na transferência de mercadorias entre estabelecimentos de um mesmo titular, muita coisa se resolveu, em especial no tocante ao crédito. Este pode não apenas ser mantido pelo estabelecimento de origem, em que pese a saída sem tributação, mas também poderá ser transferido em 2024 para o estabelecimento destino da mercadoria, com ou sem regulamentação por parte dos Estados.
Ocorre que a modulação apresentada pelo Supremo, apesar de positiva – visando resguardar direitos e evitar uma multiplicação de ações -, foi muito omissa sobre a real incidência ou não do ICMS, considerando que o tema já estava pacificado no próprio STF desde 2020, no Tema 1099, com repercussão geral, assim como estava no Superior Tribunal de Justiça (STJ) desde 2010, com o Tema 259, sem mencionar ainda a famosa Súmula nº 166.
Tudo isso porque, ao modular os efeitos da decisão e jogar os efeitos para 2024 em relação àqueles contribuintes que não discutiam o tema ou que ajuizaram ações após abril de 2021 (data do julgamento de mérito), colocou-se no mesmo balaio tanto o crédito – que era uma temática nova e que, de fato, deveria valer para 2024 -, como também a não incidência do ICMS nas saídas em transferência.
Ocorre que a modulação que jogou para 2024 a não incidência do ICMS é um absurdo, pois há mais de 40 anos se sabe da ilegalidade desta cobrança, sendo isso reforçado pelo STJ e STF de forma contundente via demanda de recursos repetitivos e repercussão geral. Admitir a modulação ora aplicada quanto aos débitos é autorizar que os Estados cobrem ICMS sobre uma temática que, há tempos, já foi reconhecida como ilegal. Trata-se de um terrível paradoxo e tremenda insegurança jurídica.
Na verdade, o que se pretendeu na modulação de efeitos foi i) retirar os artigos da Lei Kandir do ordenamento apenas em 2024, uma vez que muitas operações são balizadas nestes dispositivos, inclusive o próprio direito de débito por aqueles contribuintes que assim desejem, em especial para que possam se creditar no destino, afinal, nem todo contribuinte acha viável se valer da não incidência do ICMS. Inclusive, retirar agora os dispositivos do ordenamento seria uma violação a uma séria de situações já constituídas e estáveis, como benefícios fiscais fundados nestes dispositivos. O outro aspecto da modulação foi ii) conceder um tempo para que os estados legislassem e regulamentassem a transferência dos créditos, pois, sem lei, viveremos uma anarquia na transferência. Cada contribuinte fará a seu modo, sem qualquer controle dos estados envolvidos, aumentando, assim, ainda mais o caos e judicialização.
Veja que o mote da modulação nunca foi autorizar a incidência do ICMS nas saídas ou mesmo fatiar quando ou quem teria direito a não pagar o ICMS. Em que pese os dispositivos apenas perderem eficácia em 2024, é fato que a cobrança em si não se torna legal neste ínterim. Logo, a única certeza na decisão do STF é que o ICMS não pode ser exigido dos contribuintes, sejam os que sempre discutiram esta temática, os que ajuizaram ações após 04/2021 ou os que nunca discutiram, até porque sequer seria necessário, já que o tema estava pacificado, mesmo que as normas estaduais ainda prevejam a tributação das operações.
Estes novos embargos são mais que necessários, são essenciais para afastar a insegurança jurídica gerada pelo próprio STF, pois a modulação realizada nunca teve por objetivo permitir a cobrança do ICMS.
Sendo assim, espera-se – com ansiedade – por esta nova análise, a qual tende a colocar uma pá de cal na insegurança em que vivem os contribuintes, empresas sérias e que sempre se pautaram pelos precedentes jurídicos estabelecidos pelas duas maiores cortes de justiça do país.