1. Introdução
Nas últimas décadas, a subvenção para investimento ganhou relevo como instrumento de política de desenvolvimento regional, notadamente via crédito presumido de ICMS ou regimes estaduais assemelhados. Paralelamente, a Receita Federal consolidou entendimentos em soluções de consulta e o STJ firmou precedentes importantes sobre a (não) incidência de tributos federais sobre determinados benefícios estaduais, à luz do pacto federativo e legislações federais.
Com a Reforma Tributária (EC 132 e LC 214) e a criação do Fundo de Compensação de Benefícios Fiscais (FCBF) para mitigar a extinção desses incentivos, o jogo muda: o benefício não some, mas muda de forma.
A Reforma Tributária redesenha o mapa dos incentivos estaduais: os benefícios onerosos de ICMS serão reduzidos gradualmente, entre 2029 e 2032, e compensados com recursos do FCBF.
O art. 401 da LC 214 determina que “(…) os valores pagos ao titular do benefício oneroso (…) terão o mesmo tratamento tributário do benefício fiscal concedido pelo Estado (…) para fins de IRPJ, CSLL, PIS e COFINS”. Em termos práticos, o cash-in do Fundo herda a natureza tributária do benefício de origem e esse pode ser um ponto decisivo no tratamento tributário aplicável às subvenções governamentais.
Este artigo visa fomentar o debate sobre o possível conflito do novo regramento das subvenções com a tese firmada no STJ do pacto federativo, bem como fazer uma análise deste conflito sob ótica da Reforma Tributária (LC 214) e as implicações para o fundo de compensações criado para o período de transição.
2. Do Julgamento do Tema 1.182 pelo STJ, a Lei nº 14.789/23 e a Solução de Consulta COSIT 223/2025
O STJ, em repetitivo, delimitou o alcance da tese do crédito presumido e o tratamento das subvenções: a exclusão de crédito presumido de ICMS das bases de IRPJ/CSLL (construída no EREsp 1.517.492/PR) não se estende automaticamente a outros benefícios (redução de base, isenção, diferimento, etc.). Para esses, a Corte Superior condicionou a exclusão às exigências legais contidas à época no art. 30 da Lei 12.973/2014 e no art. 10 da LC 160/2017.
Em suma: conforme jurisprudência do STJ, o crédito presumido ocupa posição singular na estrutura dos benefícios fiscais estaduais, amparada e protegida pelo pacto federativo. Lado outro, os demais benefícios seguem a trilha dos requisitos infraconstitucionais à época existentes.
Com a edição da Lei nº 14.789/2023, houve uma profunda mudança no regramento e tratamento tributários dos benefícios fiscais – especialmente nas subvenções para investimento, ao revogar as condicionantes para isenção de IRPJ e CSLL sobre essas receitas e instituir um novo sistema de crédito fiscal.
Em breve contexto, as receitas de subvenção, antes passíveis de exclusão da base de cálculo do IRPJ e da CSLL sob certas condições (conforme o revogado art. 30 da Lei nº 12.973/2014), agora são integralmente tributáveis por IRPJ, CSLL, PIS e COFINS. Em contrapartida, a lei permite que as empresas apurem um crédito fiscal de IRPJ sobre as subvenções destinadas à implantação ou expansão de empreendimentos econômicos.
Recentemente, ao responder uma consulta de contribuinte sobre o possível conflito entre a nova lei e o pacto federativo, a Receita Federal, na Solução de Consulta COSIT 223/2025, fixou o seguinte entendimento: desde 1º/1/2024, todas as subvenções para investimento — inclusive créditos presumidos de ICMS — integram as bases de IRPJ/CSLL e de PIS/COFINS (no regime não cumulativo), porque caíram as regras de exclusão do regime anterior. A solução é explícita nesse ponto, sendo a posição administrativa vigente para subvenções “como tais” a partir de 2024.
Entretanto, a própria solução de consulta reforça que, embora o crédito presumido tivesse um histórico favorável no STJ, a mudança legislativa deslocou o debate para a nova sistemática.
3. LC 214/25: Compensação via FCBF e Espelhamento do Tratamento
Conforme citado na parte introdutória, a LC 214 instrumentaliza a transição do ICMS para o IBS/CBS e prevê compensação — com recursos do Fundo de Compensação de Benefícios Fiscais ou Financeiro-Fiscais — para titulares de benefícios onerosos relativos ao ICMS, no período de 1º/1/2029 a 31/12/2032, seguindo critérios, limites e procedimentos definidos na própria LC 214.
Essa compensação alcança benefícios onerosos regularmente concedidos até 31/5/2023 (respeitadas prorrogações até 31/12/2032 e, quando aplicável, o registro/depósito da LC 160/2017) e situações de migração normativo-estadual próximas à promulgação da EC 132/2023. Ademais, há regras operacionais (comunicações, fiscalização, transparência ativa e provisões do Fundo) e, caso remanesça saldo ao fim de 2032, há destinação específica e forma de atualização.
O ponto nuclear para a governança fiscal e contábil é o art. 401: o valor pago pelo Fundo segue, para fins de IRPJ, CSLL, PIS e COFINS, o mesmo tratamento tributário do benefício de origem. Em suma: o recurso que vier do FCBF herda a natureza tributária do benefício original.
A lei ainda estrutura um ecossistema de habilitação, fiscalização e transparência ativa, inclusive com publicação mensal dos beneficiários e montantes.
4. Tratamento Contábil e o CPC 07: Hoje vs Recebimento FCBF
Do ponto de vista contábil, o CPC 07 determina que subvenções governamentais sejam reconhecidas como receita ao longo do período, transitando pelo resultado. Ainda segundo o CPC 07, o tratamento contábil da subvenção como receita decorre do fato de que (i) a subvenção governamental é recebida de uma fonte que não os acionistas e (ii) deriva de ato de gestão em benefício da entidade, (iii) raramente é gratuita e (iv) se o tributo é despesa, a subvenção deve ser receita por simetria. Portanto, a subvenção, dessa forma, deve ser reconhecida como receita na demonstração do resultado nos períodos ao longo dos quais a entidade reconhece os custos relacionados à subvenção.
Voltando a temática do nosso artigo e aplicando os conceitos do CPC 07, nos parece coerente que o cash-in do FCBF (igualmente) deve ser contabilmente reconhecido como receita decorrente de subvenção governamental vinculada à finalidade do benefício original. A essência econômica — compensar a redução de um benefício de ICMS cujo desenho era crédito presumido — orienta o método de reconhecimento (sistemático, correlacionado ao que se pretende compensar) e as divulgações de condições e incertezas.
Dito de outra forma, o reconhecimento contábil deve seguir o princípio da substância sobre a forma, refletindo a essência econômica da compensação e assegurando coerência entre o benefício original e o valor reconhecido. E, nesta parte, não há dúvida que se trata de típica receita para o contribuinte do ponto de vista contábil. A dúvida que surge é: qual o adequado tratamento tributário a ser dado para essa receita subvencionada?
5. Crédito Presumido e FCBF: Análise sob a Ótica do Pacto Federativo
No plano jurisprudencial, o crédito presumido foi alçado a uma posição singular: a 1ª Seção do STJ (EREsp 1.517.492/PR) excluiu o crédito presumido das bases de IRPJ/CSLL para proteger o pacto federativo, isto é, para impedir que a União “reaproprie” a política estadual de desoneração por via de tributos federais. O Tema 1.182 reconhece explicitamente essa distinção: ao crédito presumido aplica-se a tese do pacto federativo; aos demais benefícios, aplicam-se LC 160/2017 e Lei 12.973/2014.
Após a edição da Lei nº 14.789/2023, a Receita Federal passou a entender que toda subvenção para investimento (inclusive crédito presumido de ICMS) compõe resultado (IRPJ/CSLL) e base de PIS/COFINS (vide SC 223/25), sendo que a contrapartida do contribuinte é a apuração de crédito fiscal conforme a lei, substituindo regime de exclusões.
Como no Tema 1.182 o STJ definiu que para benefícios “não-crédito-presumido” (redução de base, isenção, etc.) era exigido o cumprimento dos requisitos legais (constituição de reservas e afins) para afastar IRPJ/CSLL e como tais requisitos foram revogados, então nos parece não haver dúvidas de que não haverá hipótese de exclusão para fins de IRPJ/CSLL e todo valor recebido do FCBF será consequentemente tributado, inclusive para fins de PIS e COFINS.
Entretanto, para o crédito presumido é possível cogitar uma outra abordagem. Embora a SC Cosit 223 tenha passado a tratar pós-2024 tudo como tributável com crédito fiscal, não podemos desconsiderar que o STJ aplicou para esses casos a impossibilidade de tributação federal sobre o benefício estadual justamente por afrontar o pacto federativo.
Em suma, a fundamentação utilizada pelo STJ nas decisões sobre o tema (pacto federativo) e o espelhamento do tratamento previsto na LC 214 pode criar uma dicotomia entre os tipos de benefícios fiscais, dicotomia essa que pode ser sintetizada da seguinte forma:
| Grupo A – Outros Benefícios Fiscais (reduções de base, isenções, diferimentos, regimes especiais):
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Grupo B – Crédito Presumido de ICMS:
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Ou seja, temos de um lado os demais incentivos — como reduções de base de cálculo, isenções, diferimentos e regimes especiais — não estão protegidos pela questão do pacto federativo e a sua exclusão da apuração do lucro real não é mais possível desde a edição da Lei nº 14.789/2023. De outro lado, o efeito provocado pela Lei nº 14.789/2023 não alterou – e nem poderia – o Texto Constitucional. Portanto, se o embasamento para não tributação da receita contábil gerada pelos benefícios do tipo crédito presumido está na CF/88 e não nas leis revogadas – vide entendimento manifestado pelo STJ, então o tratamento tributário não foi alterado.
Logo, o recebimento do Fundo, enquanto “espelho” do crédito presumido, nos parece defensável a não incidência de IRPJ e CSLL e, por simetria expressa do art. 401, a mesma lógica se projeta para PIS/COFINS.
Isso porque a alteração infraconstitucional trazida pela Lei 14.789/2023 não tem o condão de reescrever a cláusula federativa prevista na Constituição Federal nem de impedir que o legislador complementar determine o espelhamento do tratamento do benefício no valor compensado.
A própria LC 214, ao vincular o tratamento tributário ao benefício de origem, consagra a aplicação do princípio da legalidade estrita em matéria tributária, reforçando que eventual tributação de valores compensados exigiria norma expressa em sentido contrário.
6. Conclusão
Se o benefício de origem era um crédito presumido de ICMS, devidamente instituído e fruído como benefício oneroso, e se o recebimento do FCBF vier expressamente na condição de compensação dessa redução, o valor compensado deve receber o mesmo tratamento tributário do crédito presumido (art. 401, LC 214).
À luz do pacto federativo que fundamentou o EREsp 1.517.492/PR e foi preservado pelo Tema 1.182 como distinção estrutural, a conclusão técnica pode ser: não incidência de IRPJ/CSLL sobre o montante compensado; e, pela literalidade do art. 401, transposição desse mesmo tratamento para PIS/COFINS. A Lei 14.789/2023 e a Solução de Consulta Cosit 223/2025 continuam regendo as subvenções pós-2024 em geral, mas não têm o condão de reescrever a regra constitucional nem de neutralizar a opção do legislador complementar de espelhar no FCBF o tratamento do benefício original.
Embora a SC 223/2025 seja clara ao afirmar a impossibilidade de exclusão das receitas de subvenção (inclusive crédito presumido) das bases de IRPJ/CSLL/PIS/COFINS após a Lei 14.789/2023, o recebimento do FCBF não será “uma subvenção nova genérica”, muito pelo contrário, pois por determinação legal expressa, ele é tratado como o próprio benefício original que, no caso analisado neste artigo, é o crédito presumido.
Nesse cruzamento de normas, nos parece que deva prevalecer a regra específica do art. 401 da LC 214 combinada com a ratio decidendi do STJ para crédito presumido. Em outras palavras: o que a Lei 14.789 “mudou” para subvenções em geral não desfaz o que a Constituição e o STJ firmaram para crédito presumido, e a própria LC 214 manda transportar esse tratamento para o valor compensado.
Como dito inicialmente, a transição promovida pela LC 214 não elimina os incentivos fiscais, mas redefine a forma de sua entrega. Para contribuintes beneficiários de crédito presumido de ICMS, o desafio será demonstrar a correspondência entre o benefício original e a compensação recebida, garantindo que a proteção federativa continue produzindo efeitos no novo modelo.
Por fim, não descartamos uma postura mais combativa da Receita Federal (vide o entendimento já manifestado na Solução de Consulta Cosit 223/2025), razão pela qual cada empresa beneficiária de crédito presumido deverá analisar as medidas adequadas e cabíveis dentro de sua política de riscos e compliance.
Ao final, é possível que esteja recomeçando uma discussão que (em tese) “acabou” de ser superada.





