Flávio F. P. Vieira dos Santos
Ricardo R. Bardella
A (não) incidência de ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) nas chamadas “quebras técnicas” — a perda natural de massa de produtos durante o transporte ou armazenamento — tem sido um ponto de debate relevante no cenário tributário brasileiro. Este artigo busca esclarecer por que esse tributo não deve incidir nestas situações, utilizando o caso específico da soja exportada.
1. O Fenômeno das Quebras Técnicas
As quebras técnicas referem-se ao fenômeno natural – em geral, de sementes e grãos – cuja atividade respiratória resulta em perda de sua massa. Esse fenômeno independe da ação humana, e é ampliado por situações de clima quente e úmido – como são as condições climáticas na maior parte do Brasil – especialmente em trajetos longos de locomoção pelos modais rodoviário e ferroviário.
Nesse contexto, as quebras não são fruto de má gestão ou descuido por parte do contribuinte, mas sim de processos físicos e biológicos naturais. As sementes e grãos de produtos agrícolas, como qualquer outro produto orgânico, continuam respirando e perdendo massa após a colheita, e essa perda é cientificamente quantificável. Portanto, a variação entre a quantidade de soja remetida e a efetivamente exportada decorre de fatores alheios à vontade humana, como é o caso das longas distâncias percorridas e o tempo de armazenagem.
A despeito de ser um fenômeno natural, isto pode ser tornar um problema em situações em que os grãos e sementes são remetidos para a exportação. Nestes casos, as notas fiscais de saída do estabelecimento remetente apontam um peso líquido superior àquele que, efetivamente, chegará ao porto no qual ocorrerá a exportação propriamente dita.
Trata-se de uma preocupação alfandegária legítima na medida em que o produto a ser exportado pode ter sido vilipendiado no trajeto até o porto e exportação, inclusive com propósitos ilícitos. Sob uma perspectiva tributária, isto também implica a arrecadação de ICMS, ainda que as saídas em exportação estejam amparadas pela imunidade.
Ao mesmo tempo, o contribuinte não pode ser compelido ao recolhimento do ICMS de forma indevida, uma vez que a “quebra técnica” é um fenômeno natural, e fora de seu controle. Com efeito, não há sequer materialidade para a incidência do imposto neste caso.
2. A Inexistência de Fato Gerador do ICMS
De acordo com a Constituição Federal e a jurisprudência consolidada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), o ICMS incide sobre a circulação de mercadorias que implique transferência de titularidade e agregação de valor econômico. Sob esta perspectiva, as quebras técnicas não configuram um fato gerador tributário, já que não há circulação de mercadoria ou qualquer operação econômica correspondente.
As perdas de massa, como a dilatação volumétrica no transporte de combustíveis ou a evaporação no caso da cana-de-açúcar, são exemplos de fenômenos físicos que não podem ser enquadrados como hipótese de incidência do ICMS. Nesses casos, não há venda, nem circulação econômica relevante, e, portanto, a tributação não deve ser aplicada.
Um caso semelhante julgado pelo STJ pode ser utilizado para refletir sobre a questão. Em 2020, a 1ª Turma do STJ firmou o entendimento de que o fenômeno da dilatação volumétrica do combustível não se amolda à descrição normativa hipotética que constitui o fato gerador do ICMS. Isso porque não se pode confundir o fenômeno físico com a natureza jurídica das coisas (Recurso Especial n.º 1.884.431).
A Fazenda Pública do Estado da Paraíba buscava o reconhecimento da incidência do ICMS sobre o volume dilatado de combustível. Em outras palavras, sobre o volume de combustível que, em razão do calor, expandiu-se. A 1ª Turma do STJ, por unanimidade, afastou a tese, sob o fundamento de que fenômenos naturais não constituem fato gerador do ICMS. Nas palavras da Ministra Regina Helena Costa: “É tudo que a tributação não deve ser: a tributação sobre uma ficção”.
Trata-se de um entendimento muito razoável. Mesmo porque, diversos Estados brasileiros já reconhecem a legitimidade das quebras técnicas em seus regulamentos, ainda que sob percentuais ínfimos. É o caso do Estado de Mato Grosso, por exemplo, que, em seu Regulamento do ICMS (RICMS/MT), prevê a exclusão de até 1% de variação na quantidade de grãos transportados como quebra técnica aceitável, sem incidência de ICMS.
A despeito de algumas legislações de ICMS reconhecerem a não incidência do imposto sobre os valores de quebras técnicas dentro dos percentuais legais, o fisco estadual lavra autos de infração sem ressalvas quanto à proporção de mercadorias perdidas. Trata-se de uma conduta fiscal contraditória, que enseja a litigiosidade nos âmbitos administrativo e do Poder Judiciário, além de custos tanto ao Estado, quanto aos contribuintes. A despeito das tecnicidades pertinentes à comprovação dos percentuais de quebras técnicas, o fenômeno da quebra, em si, não pode ser ignorado, sobretudo quando reconhecido pela própria legislação estadual.
De modo igualmente contraditório, o Estado do Maranhão reconhece a não incidência de ICMS sobre os valores relativos às quebras técnicas, mas apenas quando as operações são internas, conforme o Parecer.º 25/2022, da CEGAT/COTET/MA. Não parece uma discriminação razoável. Na realidade, chega a ser contraditória, na medida em que as operações de exportação saídas do Estado do Maranhão tendem a percorrer um caminho muito maior até os principais portos de exportação do país, o que, naturalmente, os submete a condições mais intensas de umidade e calor e intensificam o fenômeno das quebras técnicas.
Um paralelo pode ser feito entre as situações de quebras técnicas e outras em que também há a perda da mercadoria por razões fora do controle e alheias à vontade da empresa remetente. Esta situação é ilustrada nos casos de roubo ou furto da carga durante a locomoção ou ainda em perdas decorrentes de acidentes, sejam automobilísticos ou decorrentes de causas naturais, tais como deslizamentos de terra e chuvas torrenciais que vêm se tornando cada vez mais comuns em razão das mudanças climáticas.
No caso de cargas roubadas, há precedentes favoráveis para afastar a exigência de ICMS, como os acórdãos dos processos n.º 5003293-43.2020.4.03.6119 (TRF3); 0011633-88.2010.8.08.0024 (TJES); 1058367-06.2021.8.26.0053 (TJSP); e 0003362-76.2009.8.12.0004 (TJMS). Em todos os casos mencionados, o que se tem é uma situação em que a empresa remetente, embora possa tomar algumas precauções para evitar a perda da mercadoria, não possui e nem tem condições de possuir o absoluto controle sobre o translado.
Ainda mais importante: em razão da perda do bem, este sequer chegou a ser comercializado – interna ou externamente – e, portanto, estão ausentes os signos de materialidade aptos a ensejar a incidência do ICMS.
3. Considerações finais:
As quebras técnicas são um fenômeno natural e inevitável no transporte e armazenagem de mercadorias, particularmente em operações logísticas complexas, como a exportação de soja e milho no Brasil. A jurisprudência do STJ e a regulamentações estaduais reconhecem essas circunstâncias, e há decisões e pareceres administrativos que afastam a incidência do ICMS nessas condições, já que não se configuram como fatos geradores do imposto.
Ainda assim, são muitos os casos em que o fisco estadual procede com a autuação do valor integral da operação, desconsiderando os percentuais de quebras técnicas.
Ademais, não há uma posição unânime e pacífica do Poder Judiciário sobre a temática, o que implica em insegurança jurídica para o setor agroexportador.
Em conclusão, entende-se que a cobrança de ICMS sobre essas diferenças apuradas seria indevida, uma vez que não houve comercialização ou circulação econômica das mercadorias, tampouco qualquer outro signo que importe materialidade tributária que se associe à quebra técnica.